País não tem religião oficial, mas por que o real traz "Deus seja louvado"?
A resposta curta: por causa do Sarney
Agora, a resposta longa. Respira fundo porque lá vem textão.
Católico, José Sarney, quando era presidente do Brasil (entre 1985 e 1990), determinou por meio de um decreto que todas as cédulas da nova moeda, o cruzado, que ele criou para tentar domar a inflação, deveriam ser impressas com a inscrição "Deus seja louvado". Desde então, ateus e religiosos debatem essa treta, até hoje mal resolvida.
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Exceto por um breve período no início do Plano Real (que explico lá embaixo), ninguém conseguiu reverter a decisão do Sarney.
As primeiras notas com a inscrição começaram a circular em 24 de fevereiro de 1986 e a frase é uma variação da expressão "In God we trust" (Em Deus nós acreditamos), que aparece no dólar americano.
Isso acontece mesmo o Brasil sendo um país laico, ou seja, onde nenhuma religião é a oficial do Estado.
"Deus seja louvado" apareceu pela primeira vez no cruzado
Por que a frase está nas notas até hoje?
Nunca houve uma lei que proibisse ou obrigasse o Banco Central a incluir o texto nas cédulas. Atualmente, a frase é mantida nas notas mais como tradição do que por uma determinação oficial.
Além disso, o Brasil ainda é muito religioso e a retirada da frase desagradaria diversos setores da sociedade. Até mesmo a Constituição, de 1988, que é laica, traz em seu preâmbulo que ela foi promulgada "sob a proteção de Deus".
Por outro lado, o "Deus" da nota é genérico, pode ser dos católicos, dos evangélicos, ou de outra denominação religiosa monoteísta. A inscrição, portanto, só "desagradaria" os politeístas ou os ateus.
A tentativa mais forte que foi feita para excluí-la do real ocorreu há seis anos. Em 2012, o procurador regional dos Direitos do Cidadão Jefferson Aparecido Dias, do Ministério Público Federal, pediu à Justiça a retirada da frase.
O MPF usou argumentos bastante razoáveis, como o fato de o Estado ser laico, e promover uma fé em detrimento de outra, além de não existir nenhuma lei autorizando a inclusão de expressões religiosas no dinheiro. Em seus argumentos, o MPF fez até uma provocação: "imaginemos a cédula de real com a expressão 'Deus não existe'".
Na ocasião, o Banco Central se pronunciou dizendo que o fundamento para a existência da expressão é, justamente, o preâmbulo da Constituição (que já citei acima). O BC também levou em consideração que retirada da expressão iria custar R$ 12 milhões aos cofres públicos e gerar intranquilidade na sociedade.
A Justiça, no entanto, negou o pedido do MPF. A justificativa foi a de que a expressão não é uma afronta à liberdade religiosa e que o MPF não apresentou dados concretos de que a frase cause incômodo à sociedade.
Um trecho da decisão da Justiça também traz argumentos interessantes para a manutenção da frase, que reproduzo a seguir:
"O exemplo mais contundente dessa distinção é, como já dito, o da Inglaterra, país com alto grau de liberdade religiosa, mas com uma religião estatal reconhecida na Constituição, onde o monarca é o governador supremo. No Brasil a longa tradição católica como religião oficial (mais de trezentos anos) deu nome a muitas cidades, institui vários feriados oficiais e delineou culturalmente o país. Tanto é assim, que apesar de não existir uma religião oficial, o Cristo Redentor é símbolo do País e o Natal é comemorado com decorações pagas pelas Prefeituras na grande maioria das cidades. Compete ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público Federal, sob o argumento da inconstitucionalidade, afastar todas essas práticas, mudando o nome das cidades, abolindo feriados religiosos, impedindo que o Poder Público mantenha símbolos religiosos e comemorações afins? Creio que não".
Até o Sarney, causador da treta toda, se pronunciou. "Eu tenho pena do homem que na face da terra não acredita em Deus", disse candidamente.
E no Império?
Vale lembrar que o Brasil nem sempre foi um Estado laico. A Constituição do Império do Brasil, de 1824, começava com a frase: "Em nome da Santíssima Trindade" e continuava em seus primeiros artigos falando sobre o território, o governo, a dinastia e a religião.
No artigo 5º, a Carta Magna era categórica: "A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do templo".
E, mesmo assim, o dinheiro do Império não trazia a tal frase que hoje aparece em todas as nossas notas. Nas moedas, Deus aparecia escrito abreviado em latim na frase que acompanhava a efígie do imperador: "PETRUS II D. G. C. IMP. ET PERP. BRAS. DEF." que significava "D.Pedro II, pela graça de Deus imperador constitucional e perpétuo defensor do Brasil".
Quando o real saiu sem "Deus"
Por um curto período de tempo em 1994, as primeiras cédulas de real de R$ 1, R$ 5, R$ 10, R$ 50 e R$ 100 saíram sem a frase "Deus seja louvado".
Uma reportagem publicada pelo O Estado de S.Paulo em maio de 1994 explicava que o presidente interino e diretor de produção da Casa da Moeda, Tarcísio Caldas Pereira, não teria recebido nenhuma ordem do Banco Central e por isso as novas notas não saíram com a frase.
De acordo com Catálogo de Cédulas do Brasil, de Manoel Camassa, as notas que não tiveram a frase foram assinadas por Fernando Henrique Cardoso e Pedro Malan. E, depois, por Rubens Ricupero e Pedro Malan. Foi Ricupero, como Ministro da Fazenda, o responsável por pedir a volta da frase nas notas ainda em 1994.
As notas de R$ 100 sem a frase e com a assinatura de Ricupero e Malan, aliás, estão entre as mais valorizadas pelos colecionadores e podem custar alguns milhares de reais. O motivo é que saíram pouquíssimas unidades dela na época, já que, logo em seguida, o ministro pediu para que a frase fosse incluída novamente.
Particularmente, não tenho objeção ao dinheiro vir com a frase em louvor a Deus. Nos dias atuais, está tão difícil ganhar algum trocado que, quando conseguimos juntar um pouquinho, é praticamente um milagre mesmo.
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